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Sociedade anônima, gerentes e a chave da crise mundial
O capitalismo de hoje é um sistema orientado pelos dirigentes de empresas
Se os gerentes perderam empregos, o efeito multiplicador desta casta, nada desprezível, complica a economia
Entender as origens, os desdobramentos e as consequências da atual crise do sistema financeiro é um trabalho que mal deixou de começar. Para o sucesso desta empreitada intelectual será necessário o empenho de muitos economistas e outros tantos cientistas sociais ao longo de anos. Já sabemos que muitas coisas irão mudar. Mas, infelizmente, os detalhes a respeito das mudanças, à parte todas as frases de efeito que por aí circulam, são ainda muito nebulosos para suposições precisas. Assim sendo, partamos do evidente para reflexões mais refinadas sobre os choques que a economia vem sofrendo desde meados de 2008.
Independente da época e do contexto, duas questões são fundamentais para empreender o capitalismo: trabalho livre e propriedade. Se olharmos a crise através destas duas óticas podemos incluir no debate questões importantes até então negligenciadas - porque as distintas formas pelas quais o trabalho e a propriedade se configuraram no decorrer da história é que diferencia um modo de produção de outro ou um capitalismo nacional de outro.
Ao recuperarmos a gênese dos estudos sobre a estrutura social do capitalismo, Marx expunha duas classes fundamentais: burguesia e proletariado. Independente de qualquer discussão a respeito da importância atual desta abordagem, temos que levar em consideração que a social-democracia europeia elevou a qualidade de vida do proletariado por meio de medidas do Estado de bem-estar social. Este fato transformou a mobilidade social numa realidade e acabou dando importância quantitativa e qualitativa às classes médias nos países desenvolvidos. Nos anos 80, observaram-se algumas mudanças nas ocupações: neomarxistas americanos (como Olin Wright ) fizeram estudos sobre a presença de gerentes e supervisores como uma categoria social não-proprietária, mas com poder de decisão sobre o trabalhador, comportando-se como patrões.
Tudo isso claramente sofreu o impacto oriundo das formas de acumulação, da geração de crescimento e da renda nacionais. Assim, podemos defender grosso modo que as mudanças na estrutura social vieram a partir de mudanças na estrutura de propriedade. E isso tem mudado bastante ao longo da história do capitalismo. Se observarmos a obra de Berle & Means (ainda em 1932) sobre as corporações, vemos que a estrutura da propriedade não condiz com o poder de decisão dentro da empresa. Ou seja: a grande empresa era um corpo autônomo que funcionava independente de seus donos. Enfim, já faz muito tempo que grandes proprietários não tomam para si a gestão dos negócios, converteram-se em acionistas que não acompanham o dia-a-dia da empresa.
No andar superior do capitalismo, onde se gestou, desenvolveu e eclodiu a crise, as relações de propriedade e decisão se complexificaram durante o Século XX. Muitos gerentes, consultores, supervisores e técnicos assumiram o papel da gestão das empresas e em troca disso ganharam salários exorbitantes, benefícios inacreditáveis e um estilo de vida de celebridade. Formou-se uma casta de managers que tem um padrão de consumo bastante elevado, fazendo movimentar o consumo e a expansão do sistema de cartão de crédito. Na crise, estes foram os primeiros "trabalhadores" ou não-proprietários a sentir seus efeitos. E se os gerentes perderam empregos ou tiveram seus contratos de trabalho restringidos, o efeito multiplicador desta casta, nada desprezível hoje, complica a economia.
Mas o mais grave não diz respeito aos ajustes imediatos que a crise tem gerado. A hipótese aqui defendida é que, se a crise for tão forte como o prometido, a organização capitalista das grandes corporações financeiras, caracterizada por gerentes que tomam conta da inovação organizacional das empresas, empenhados em otimizar resultados, trabalhar com metas e planejamento estratégico vai encontrar momentos de revisão.
A difusão da propriedade em papéis acionários chegou ao nível de complexidade que exige muita desregulação para gerar renda. Esta galinha dos ovos de ouro tem dado sinais de exaustão. Havia um equilíbrio entre as diretorias e conselhos que agora está prestes a ser rompido: ganhavam os acionistas com a valorização dos papéis, ganhavam os gerentes comendo uma fatia dos lucros através de seus bônus e benefícios. Não havia conflitos. Mas se o sistema financeiro mudar, muda também esta relação - e então: como vai ficar as possibilidades de equilíbrio entre gerentes e acionistas?
O capitalismo de hoje é um sistema orientado pelos gerentes. Esse elemento em perspectiva histórica é fundamental para entender a crise e seus desdobramentos. Foram as decisões dessas figuras-chave do sistema que elaboraram a mística desordem que levou à crise. Não é exceção considerar a dureza com que Obama tratou os diretores da GM. Agora, seu plano de ação para a regulação do sistema financeiro implica em monitorar empresas financiadoras e observar a geração de lucros através do controle de riscos. A crise pode ter atingido os laços que mantinham unidos gerentes e seus acionistas com aval da política financeira. Será forte o suficiente para fazer rever esta relação?
Respostas estão a desenhar-se. Mas, a sociedade anônima capitalista encontrou um grande dilema a superar: como lidar com os executivos escolhidos para administrar o patrimônio dos investidores? Mais: como fazer isso sem valorizar de modo exorbitante e irregular as ações das empresas?
Não vamos com isso demonizar pessoas ou posições. Porque enquanto todos ganhavam com a desordem, ela era boa e desejável. Mas agora que a busca desenfreada por bonança deve dar lugar ao bom senso, não faz sentido apontar bodes. Enquanto os governos se preocupam com o contágio e ainda não reforçaram as medidas para evitar novas crises, os efeitos das mudanças não nos são percebidos. Entretanto, quando as novas ordens fizerem-se fatos, é preciso estar atento porque a estrutura social pode mais uma vez nos revelar se há e qual o grau de mudança no sistema capitalista. Resta aguardar as respostas que só o tempo pode nos dar: a crise foi forte o suficiente para gerar impacto na estrutura social e no equilíbrio de gestão da propriedade capitalista?
Luis Fernando Vitagliano é doutorando em Ciência Política na área de Relações Internacionais, Unicamp.
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